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A foto que eu não bati

*tamanho: 2.115 palavras, 14 parágrafos



A foto que eu não bati

Meu projeto fotoetnográfico no Instagram e uma pequena história
1.
Existem várias frases boas sobre fotografia, sobre o que significa o ato de fotografar. No meio desse mar extenso de classificações eu tenho uma preferida. É da Susan Sontag. “Fotos constituem uma gramática e, mais importante ainda, uma ética do ver.” Gosto muito destas três palavras: gramática, ética, ver. Para a parte de mim que fotografa, acho que elas funcionam como um tipo de fronteira, baliza. Uma baliza regulatória que está presente nas cerca de 400 fotos de pessoas que eu já bati nas ruas desde 2017.

2.
É estranho. A primeira referência que me deixou com vontade de pôr em jogo um projeto fotoetnográfico não foi um fotógrafo, mas sim um escritor: Jack London, 1876-1916. Eu já adorava os livros dele (em especial O Chamado da Floresta, que mudou para sempre o que sinto quando acaricio um cachorro ou observo um horizonte aberto), eu já adorava os romances e então em certo momento descobri que além de escrever livros ele batia de forma sistemática fotos de pessoas, o que me fez pesquisar com uma devoção renovada essa outra faceta da vida dele — mantive inclusive conversas afetuosas por e-mail com a Sara Hodson e a Carol Dodge, curadoras dos museus californianos onde estão muitos objetos de Jack London.

3.
Já a segunda referência (agora contemporânea) para mim foi o fotógrafo Brandon Stanton, que em 2011 criou o hipnotizante Humans of New York, cujo método consiste em abordar, fotografar e ouvir pessoas nas ruas — tudo o que sei é que alguma coisa ali me comoveu e me fez perceber que por meio dessas fotos e conversas presenciais com desconhecidos o Brandon Stanton talvez estivesse chegando um pouco mais perto daquilo que é a vida de verdade.

4.
O que eu quero dizer é que, no meu caso, como não sou fotógrafo, não sei justificar direito essa vontade que às vezes sinto de me aproximar de pessoas nas ruas, conversar com elas e depois fotografá-las. Realmente não sei. Dando um chute subjetivo, acho que essas ações minhas se originam de lugares interiores variados. Elas talvez tenham a ver (1) com um jeito pessoal de tentar ler a realidade, (2) com certa inclinação a investigar como os outros lidam com o tema impossível da identidade, (3) com uma ideia de contraponto ao excesso de selfies nas redes, ao excesso de myself, (4) com uma frase que não sai da minha cabeça, frase da fotógrafa Tina Barney: "Eu quero saber o que as outras pessoas sentem; caso contrário, é muito solitário".  

5.
97% das fotos de pessoas que eu bato nas ruas não são fotos programadas. São imprevistas, surgem no quente do instante. Na verdade nunca sei quando nem onde isso irá acontecer, muito menos quem será a próxima pessoa que irei fotografar. É mais ou menos assim: estou caminhando ou pedalando pela cidade, estou resolvendo as infinitas questões práticas da vida adulta e, mistério, alguém de repente chama a minha atenção, alguém de repente me manda um aceno invisível e cifrado, sim, um aceno invisível e cifrado, essa pessoa nem se dando conta de que fez isso.

6.
Os outros 3% das fotos de pessoas que eu bato são fotos agendadas, até porque às vezes escrevo matérias sobre gente e então nesses casos é necessário que eu tenha uma metodologia mais decidida, mais pautada, com local, horário, briefing. Nessa modalidade em que há o agendamento dá para controlar melhor as coisas, os objetivos. Eu gosto de praticá-la. Só que no fundo essa modalidade sempre é punida um pouco (bem pouco, mas é) com certa perda de espontaneidade, de surpresa, de assombro.

7.
A foto que eu não bati (título deste texto) fazia parte da categoria de fotografias agendadas. Foi assim... Bem no início da tarde de 7 de março, uma terça úmida e ventosa em Caxias, a Caro me mandou um whats e disse que a norte-americana JJ Thames iria fazer um show no teatro do Sesc naquela noite, vamos? Mesmo não sabendo nada sobre essa cantora de blues, senti de repente uma vontade impositiva de bater uma foto dela. Sem pensar muito, abri o Instagram, mandei um direct para o jornalista Andrei Andrade, que é uma pessoa superengajada com o mundo bluseiro, e perguntei se ele iria entrevistar a JJ Thames antes do show. Perguntei se havia alguma chance de eu, por cima do ombro dele, conseguir bater uma foto dela e talvez fazer uma pergunta só minha.

8.
O Andrei respondeu logo. Disse que não tinha se organizado para entrevistar a JJ Thames e então me passou o contato da Carina, do Sesc. Mandei um whats para ela e expliquei de modo resumido a natureza do meu projeto, expliquei a mistura possível de jornalismo e antropologia que eu procurava enxergar em cada foto, a busca pelo testemunho dos outros, a busca pela alteridade, será que eu não poderia bater uma foto da JJ Thames antes do show e fazer para ela uma pergunta só minha? A Carina respondeu sem me dar certeza, mas foi zelosa e encaminhou a minha mensagem ao guitarrista Alexandre França, que fazia parte da banda e era um dos articuladores da vinda de JJ Thames ao sul do Brasil. Eu precisava esperar.  

9.
Tirei uns minutos para mim, digitei JJ Thames tanto no Youtube quanto no Google e fiquei lendo um pouco sobre a bio dela. A infância em Detroit. A primeira vez num palco aos 9. O piano e as técnicas vocais jazzísticas. A primeira gravidez aos 17 e a mudança meio forçada com os pais para o Mississippi. O estudo de administração e marketing no Mississippi College e os sonhos musicais suspensos. O segundo filho. A morte dele aos dois anos devido a um linfoma bem raro. O consolo possível no blues e a escolha de se arriscar em Nova York mesmo sem um lugar para ficar e sem dinheiro. A batalha por moedas cantando no metrô e o metrô às vezes como sofá e cama. O primeiro abrigo para pessoas sem-teto, no Bronx. O emprego num restaurante. A volta ao Mississippi, o terceiro filho e o segundo abrigo para gente sem-teto. A textura do fundo do poço. O sangue frio no desespero e a criação da música Tell you what I know. A hora certa no lugar certo com a energia/raiva certa e o primeiro lugar na Billboard Hot Singles Sales Chart. Os frilas de backing vocal. A história errada no amor e o divórcio. Enfim o contrato com a gravadora Dechamp Records e tudo o que aconteceu em seguida na vida da JJ Thames.    

10.
Enquanto eu esperava uma resposta do guitarrista Alexandre França e ouvia no Youtube I’d rather go blind na voz da JJ Thames, olhei pela minha janela e me perdi um pouco, tentando adivinhar o que as pessoas desconhecidas com as quais eu converso e depois fotografo nas calçadas pensam sobre isso. Impossível saber, porque no fundo cada uma delas interpreta essa experiência de modo diferente, de acordo com os estados de espírito e sentimentos a que estiverem expostas no momento, então tudo o que posso fazer é buscar interpretar o que eu mesmo penso e sinto sobre essa prática, que para mim sempre teve a ver com diálogo, vínculo, naturalidade e confiança mútua, em oposição consciente à falta de diálogo, ao isolamento, ao artificialismo e à desconfiança. Ainda olhando pela janela, pensei também nas consequências concretas que às vezes surgem na minha vida depois que bato a foto de alguém nas ruas ou escrevo uma matéria sobre esse alguém. Um exemplo recente e expressivo é a Sofia Rigotti, que aos 14 anos foi diagnosticada com transtorno afetivo bipolar do tipo 2 e que, na conversa que teve comigo, sem perceber, me instigou a adquirir um abafador de som igual ao que ela usa em várias situações devido à sua hipersensibilidade a certos ruídos, então alguns dias depois eu dei uma pesquisada e comprei pela internet um Muffler 3M vermelho igual ao dela, que para minha surpresa está sendo bem útil para mim em muitas ocasiões, já que o direito à escolha de não ouvir nada que vem de fora acabou me deixando mais autoconsciente a respeito de algumas coisas, como por exemplo da minha tendência à introspecção, que, se por um lado é uma característica que às vezes pode ser dispersiva e antissocial, por outro lado é uma forma de acesso ao último reduto disponível de individualidade em meio à confusão geral que se tornou a vida de todos nós hoje.

11.
O guitarrista Alexandre França não respondeu, pelo menos não até a hora do show, então naquela terça à noite no Sesc assisti à apresentação da JJ Thames sem ter conseguido bater uma foto dela e sem ter feito uma pergunta só minha, do meu jeito. Sim, ainda existia uma possibilidade, já que eu tinha descoberto que após o show ela bateria fotos com as pessoas que quisessem se aproximar, mas por algum motivo senti que para mim esse jeito não funcionaria, não porque eu fosse ciumento e quisesse uma atenção exclusiva dela, mas simplesmente porque nessa interação relâmpago não haveria tempo para que eu buscasse aquilo que no fundo é o mais importante para mim quando bato a foto de alguém e converso com esse alguém, que é algo que talvez possa ser descrito como “viver uma miniexperiência de conexão real, de diálogo real”.

12.
Verdade, eu também poderia ter batido uma foto dela durante o show, já que bem no fim a JJ Thames circulou pela plateia do teatro e, pelo fato de eu estar colado ao corredor esquerdo, passou a um metro e meio de mim, inclusive estabelecendo contato visual, um olhar gentil que ela teve o cuidado de direcionar para todo mundo que estava ali. Então, sim, era uma oportunidade ótima de fotografá-la, até porque havia no teatro uma iluminação intimista, um cinza meio azulado que teria dado personalidade à imagem, só que naquele instante não existia a menor chance de eu puxar o meu celular do bolso e fazer a foto, zero chance, porque isso seria passar a perna num momento singular, um momento em que eu precisava absorver a voz e a aura da JJ Thames sem nenhuma lente entre mim e ela, sem nenhuma mediação supérflua. O olhar dela estava ali. O timbre e a intensidade vocal estavam ali. Ela cantando no metrô e usando o metrô como sofá e cama. O abrigo no Bronx para gente sem-teto. Os filhos vivos. O linfoma raro do filho morto. A solidão e os empregos errados e o divórcio. O sangue frio no desespero. Tudo isso a um metro e meio de mim, olhando nos meus olhos.

13.
Na manhã seguinte, quarta, dia internacional da mulher, procurei a JJ Thames no Instagram e resolvi mandar um direct para ela e um também para o guitarrista Alexandre França, mensagens diretas mesmo, dessa vez sem o intermédio prestativo do meu amigo Andrei Andrade nem o da Carina, do Sesc. Enviei os directs dizendo que, se por acaso ela ainda estivesse em Caxias naquela manhã, eu poderia dar uma fugida das obrigações de trabalho, poderia subir na minha bicicleta e ir até o hotel dela para então bater uma foto e, se desse, fazer uma pergunta só minha.

14.
Ao longo daquela quarta, em momentos diferentes, tanto o Alexandre França quanto a JJ Thames reagiram às minhas mensagens e me enviaram respostas acolhedoras de desculpas por não terem encontrado um tempo para dar atenção a mim. Fiquei silenciosamente grato pelo retorno, pela gentileza deles com uma pessoa totalmente desconhecida, e então pensei que era a hora de deixar para trás a foto que eu não havia batido. Antes, porém, coloquei mais uma vez no Youtube a música I’d rather go blind cantada pela JJ Thames (de cabelo verde) no La Usina Bar, em Buenos Aires, e nessa nova olhada vi uma coisa que eu não tinha visto na vez anterior. É importante primeiro dizer que na marcação de tempo 7’29” ela muda a fisionomia e começa a entrar na atmosfera da etapa final da música, que é uma atmosfera mais chorada e mais passional, e a partir dali aparece uma sequência muito bonita de amplitudes dramáticas, até que chega a vez da cena que eu tinha deixado escapar. São apenas sete segundos, entre 9’51” e 9’58”. Ela dá um passo para trás, afastando-se do microfone, e então sem que as caixas de som do palco exteriorizem a força desse sentimento a JJ Thames solta dois gritos enormes que só podem ser para si mesma e para todas as coisas que aconteceram no passado dela, tudo junto, as humilhações, os caminhos tortos, o linfoma raro atravessando o destino do segundo filho. Dois gritos catárticos e autopurificatórios que, aos 44 anos, eu ainda não consegui soltar.

A foto que eu não bati
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